Eu e só
Existem espaços na nossa vida que são assim contínuos e que não deixam margem para descobrirmos outras coisas na vida ou então são demasiados limitados. Olhando para o que me rodeia consigo observar que não posso queixar-me muito, seres tão pequenos como as tartarugas que passam o dia confinadas no seu espaço de acrílico, devem ser felizes, têm o seu sol, têm a sua comida e não devem ter qualquer preocupação na sua vida. Vou sair, quero ver as pessoas, quero respirar o mundo, quero sentir-me viva e quero ser feliz.
São nove e pouco da manha e a Sónia, veste-se apressadamente tentando disfarçar na roupa a falta de sorriso que lhe vai na alma. Na noite passada soube que o irmão ia sair de casa e que iria viajar para África, em busca de trabalho e de outra oportunidade. Os pais, também estão de saída para a casa nova, longe do reboliço da cidade e do espaço eximo que a casa nesta altura aparenta ter com quatro adultos. Em breve o espaço será grande demais para uma só pessoa. Será o espaço de uma pessoa só.
Já se ouve o frenesim da cidade, o mercado é aqui perto e os carros entram e saem desta rua sem saída à procura de um espaço para estacionar. O prédio da frente parece estar mais bonito hoje, o sol bate de frente e torna mais viva a cor e as pessoas que estão à janela.
Vou sair de casa, acho que já estou atrasada e o Rui não deve poder esperar muito mais. Ao sair de casa lembrei-me que deixei as tartarugas na janela, será que este sol lhes vai fazer bem? Será que deixei comida? Tantas duvidas. Subo a rua e vou cumprimentando as pessoas que surgem, descubro que existe felicidade no meio delas, parecem sorrir não sei se pelo dia se é apenas para mim. Dói-me alma por antecipação, vou ficar sozinha e não me agrada essa sensação.
Na semana passada, depois do meu irmão se ter escondido novamente nos seus segredos fiquei com a sensação que algo de muito grave ia acontecer. Não imaginava que iria ser algo assim tão drástico e tão rápido. Ele não devia ir embora, ele já passou e já deu tanto por aqui e eu que tão bem sei o que é dar o máximo por algo e ser colocada de lado. O meu trabalho na gelaria tem também os seus dias contados, não me quero sentir como me senti, não quero que pensem que podem fazer tudo de mim. Não são atitudes dessas que me vão fazer voltar e a querer ficar, já chega, já não quero mais, quero mudar. O Rui vai pensar que voltei a adormecer, acho que estou muito atrasada.
O meu irmão, o meu melhor amigo, a única pessoa que me compreende, a única pessoa que me ouve, a única pessoa que me ajuda sem hesitar e sem perguntar nada, vai embora, para longe assim do nada, sem me avisar. Triste a minha alma, triste o meu coração. Mas não posso. Não quero ser assim, não posso ser assim, ele lutou muito ele merece melhor. África.
Nas ruas surgem os mais variados compradores do mercado, os casuais e aqueles que aparentam ter esta mesma rotina à anos. No céu não se vêm nuvens apenas o céu azul com os pombos do costume.
Este jardim, que saudades que tenho dos tempos em que brincava neste jardim, ainda sem a agua e com o Senhor Joaquim que da cozinha saia para me nos dar uns rebuçados sempre que nos via. Ele não precisava de nos chamar já quase que o sentíamos sair da cozinha e a pôr as mãos aos bolsos para retirar aqueles rebuçados que nunca se repitam nem pelas cores nem pelos sabores. Que bonito que está o jardim hoje.
Não me posso demorar o Rui está à minha espera, acho que já o vejo.
Ao descer a rua a Sónia apercebe-se da quantidade de coisas que as pequenas lojas parecem vender, o interior já não é suficiente e os olhares não conseguem fixar nem as bancas nem as montras com o material que elas ostentam.
(sónia) Olha Rui!
(sónia) desculpa o meu atraso mas voltei a adormecer, como estás?
(rui) estou bem, vim cá fora fumar um cigarro, o almoço hoje parece que vai ser concorrido, com as festas aqui ao lado.
(sónia) festas? que festas?
(rui) da cidade Sónia. Onde é que tu andas com essa cabeça?
(sónia) não sei, ando tão ocupada a pensar na vida que nem sei em que dia estamos
já deu para reparar? eu estou bem eu fico bem.
(rui) Ontem a noite acabei por sair e diverti-me um pouco, trouxeste o que te pedi?
(sonia) Sim, trouxe, não sei se te vai ajudar muito mas acrescentei uma coisas ontem para que te consigas guiar
Enquanto o Rui desfolha os apontamentos que a Sónia lhe acabou de dar, ela aproveite e vai espreitar o que se passa à porta da Igreja. Repara que existe um grande agitação e muitas pessoas paradas a olharem para um estrado onde cantam uns estudantes.
(rui) Sónia, esta impecável! Bigada
(sónia) Espero que te sirva e que consigas fazer isso. Vou andando sim.
(rui) sim claro, até mais logo.
Enquanto a Sónia caminha de volta à praça Rui apaga o cigarro e entra no restaurante. Sónia tenta aproximar-se mais perto mas não consegue, pois esta tudo rodeado de turistas. Resolve então ir dar a sua volta de regresso a casa.
Festas da cidade, já não me lembro da ultima festa que fui, nem à quanto tempo foi! Tenho que começar a pensar no que vou fazer, tenho que arranjar um novo trabalho, tenho que me decidir rápido. Não posso voltar a trabalhar na galeria, não me pagam quase nada para o trabalho que tenho, quero deixar de me preocupar, quero sentir-me bem, quero ser feliz…
(joão) Sónia!!!..
(sonia) hey, ola João!
(joão) Tá tudo bem?
(sónia) Sim tudo.
(sónia) Parecia que estas a falar com alguém
(sónia) sim estava comigo. A pensar alto em coisas, e tu como estas?
(joão) Estou bem, vou ver se consigo ir ver de uns livros e tu que andas a fazer?
(sónia)Vou para casa!
(joão) Ah, posso acompanhar-te, a livraria é perto.
(sónia)Sim claro, então como vão as coisas com o curso?
(joão) Vão bem, alias não podiam ir melhor, alem do curso consegui um novo trabalho numa empresa nova, e tu? Ainda nas galerias?
(sónia)Sim ainda mas por pouco tempo, quero sair mas primeiro tenho que procurar
estas com uma cara triste. De certeza que esta tudo bem?
(sónia)Não nem por isso.
(joão) Então?
(sónia)O meu trabalho não corre como eu desejava, o meu irmão vai embora, vou ficar sozinha em casa e não sei como vai ser o meu futuro
Fez-se silencio enquanto continuavam a caminhar…
(sónia)Desculpa
(joão) Nao digas asneiras se eu não quisesse saber não perguntava não é, posso ajudar ?
(sónia) Não, obrigada tenho que ser eu a dar a volta mas não sei como!
(joão) Vais conseguir, lembras-te que uma vez me fizeste um promessa de me dar um beijo na boca em frente a minha namorada e que acabas-te por dar a volta?
A Sónia sorri..
(sónia)Não seja tolo, lá ia adivinhar que tinhas esse dinheiro na carteira! Imagina se tivesse dado, ela tinha-me matado na hora!
(joão) Nah, mas viste conseguis-te dar a volta à situação e agora também vais conseguir
(sónia) não sei se vou, as coisas desta vez são mais sérias, não sei se tenho forças para tanto! Preciso de pensar muito e de me decidir e farta de pensar ando eu! Bah
(joão) se te puder ajudar em alguma coisa sabes que podes contar comigo!
(sónia)Sim eu sei, obrigada!
Existe um novo compasso de espera enquanto continuam a sua caminhada pelas ruas da baixa. Sónia para no caminho para olhar para uma montra de uma loja enquanto que o João observa as crianças ciganas que se divertem com a fonte de água!
(joão) Sónia olha para ali..
(sónia) Sim..
A Sónia sorri, uma das crianças acabou sentada em cima do repuxo e não se consegue levantar de tanto rir, e os colegas também não o ajudam porque se riem ainda mais.
(sónia)Coitada!
(joão)Nah aquilo é puro divertimento vais ver que não tarda nada está la outra sentada para ver como é!
Continuam a caminha e entram numa das ruas que leva a uma loja antiguidades
(joão)vens comprar alguma coisa ou vens trabalhar para aqui?
(sónia) Nem uma coisa nem outra, costumo sempre parar aqui para ver coisas novas.
Poucos minutos depois já estão perto da igreja de São Tiago.
(sónia) Já viste como toda a gente parece feliz hoje?
(joão) E então? Não é para se estar? Estamos vivos não estamos?
(sónia) Sim é verdade, mas parece que hoje sou a única que não está
(joão) não sejas assim, não mesmo, não penses mais nisso tenta dar a volta por cima sim! Deixa de pensar e faz as coisas acontecerem! Vais ver que resulta.
(sónia) Estou cansada de tanto pensar, nem sei se dormi ou não de tanto pensar e tentar arranjar soluções, estou tão cansada!
(joão) Vá lá faz um sorriso bonito no corpo e na alma! Vais ver que te vai fazer bem
(sónia)Não consigo dói-me tudo por dentro… estou tão cansada.
Sobem as escadas paralelas à igreja de São Tiago e chegam ao inicio da subida para a casa da Sónia, o João despede-se e deseja uma vez mais boa sorte..
(joão) Mi vou, ficas bem?
(sónia) Sim fico, obrigado pela companhia sim.
(joão) Não digas asneiras sabes que gosto de ti e que se te puder ajudar em alguma coisa podes contar comigo!
(sónia) Sim eu sei, e não me ligues hoje não?
(joão) Bah, beijo, fui.
Sónia volta ao seu percurso e começa a subir a rua para sua casa, continua mergulhada nos seus pensamentos e cada vez mais se sente amargurada. O sentido de solidão e de abandono percorre-lhe a alma, as decisões e indecisões ferem o seu corpo como se não valesse a pena viver mais, como se a vida tivesse terminado, como se mais nada fizesse sentido, a sua alma quer soltar-se.
“RUA CORPO DE DEUS”