Os carteiristas do 28

Acção no eléctrico

Os três carteiristas de boné, cercam a vítima na paragem da rua Conceição e, na confunsão, roubam-lhe a carteira. O turistas, de pullover às costas, só dá pelo furto na estação seguinte

É um ‘pintas’ em estado puro. Fala em alta voz e pelos cotovelos, veste um blazer por cima de uma t-shirt colorida e conta histórias do arco-da-velha numa tasca para os lados do Paço do Lumiar. Luís Simões pertence à velha guarda de carteiristas mas diz-se retirado das lides, aos 51 anos. “Agora sou pedreiro”, declara, mostrando as mãos com marcas de cal. As mesmas com que aos onze anos já surripiava “cabedais” na Baixa de Lisboa. “Ou gamava ou levava uma galheta do Marinho do Bairro Alto. Não tinha outra hipótese”, lembra. Nessa altura, ficava apenas com 10% do lucro.

Aprendeu depressa o ofício. Umas carteiras mais tarde, já em dupla com o Chico Fininho – também reformado -, dava-se ao luxo de trabalhar da uma às três da tarde no Metro. Duas horas entre o Rossio e a Rotunda podiam render-lhes 80 contos (400 euros). Livres de impostos. “Vivi como um rei. Tinha três carros e se me apetecesse ia tomar o pequeno-almoço ao Porto”, confessa.

Transformou-se numa lenda do meio mas jura não ter nenhum truque nem a mão especialmente leve. É tudo intuição em estado puro. Ele desvenda: “Olhamos para um ‘guiro’ (turista estrangeiro) e tiramos-lhe a pinta enquanto ele espera na paragem, para perceber se é ‘cabra’ (esperto) ou despassarado. Depois, metemos a mão (roubam a carteira) ou damos a tanga (distraem o turista)”. Tão simples como saltar à corda? Sim e não. Há carteiras menos recheadas do que pareciam à primeira vista. “À partida, pela grossura da ‘música’, podemos perceber se carrega ‘balúrdio’. Muitas enganam. Estão ‘nixo’, não têm nada.”

Para Simões, o grande inimigo dos carteiristas tem a sigla ATM. “As Caixas Multibanco vieram estragar o negócio. Os ‘guiros’ andam agora com menos dinheiro no bolso”, queixa-se o tripeiro que fez carreira na capital. “Mas continuam demasiado distraídos.” Ele confessa o gozo que lhe dava gamar italianos. “Armam-se em bons, pensam que nos topam e ainda por cima têm a carteira cheia de guita.” Já os espanhóis são os mais desconfiados. “Lá na terra deles é que são mais molinhos.”

Os anos passados na prisão, entre 2001 e 2005, e a condenação mais recente a seis anos de prisão, com pena suspensa, não lhe retiram a verve: “Os carteiristas de agora não são leais uns com os outros. Estão desesperados, por causa da droga. Roubam, fazem mal às pessoas se for preciso e andam em grupos tão grandes que até um cego os topa à distância.”

<b>Guiro roubado</b><br/>O turista francês (à direita na foto)não apresentou queixa à polícia mesmo depois de ter ficado sem 600 euros. Quer ter umas férias tranquilas
Guiro roubado
O turista francês (à direita na foto)não apresentou queixa à polícia mesmo depois de ter ficado sem 600 euros. Quer ter umas férias tranquilas

Não está muito longe da verdade. Nas paragens dos eléctricos 28 e 15 é fácil tropeçar neles. Usam todos uma espécie de kit, que serve aparentemente para se camuflarem entre os turistas: boné com pala, pasta ou mapa debaixo do braço e uma mochila às costas. O Expresso, que andou uma semana no vaivém entre o Chiado, Graça e Cais do Sodré, viu o grupo do Zé do Porto, um dos ‘mãos leves’ mais afamados de Lisboa, em acção. A vítima era um turista francês de idade avançada que se preparava para entrar no eléctrico, na Rua da Conceição. À sua frente, Carla finge não saber onde guardou o passe, deixando o turista Renée entalado entre ela, o Alfredo Maluco e o Zé do Porto. Os dois carteiristas, que fingem querer entrar no eléctrico à força, empurram-no e com a confusão, um deles tira a carteira do bolso das calças e passa-a logo a outro. O gesto é tão rápido que nem a lente da máquina fotográfica o consegue captar.

Na paragem seguinte, perto da Sé, o turista, de Marselha, dá o alarme. Os agentes da Divisão de Segurança a Transportes Públicos da PSP que circulavam nas imediações ainda perseguem o grupo pelas ruelas de Alfama. Mas os carteiristas estão a jogar em casa e despistam a polícia. “Tinha 600 euros na carteira. Como cheguei ontem a Lisboa, ainda não tinha gasto nada”, queixa-se Renée, que mesmo assim preferiu não fazer queixa do furto. “Dá muito trabalho. Quero ter o resto das férias em paz.”

As 600 brasas irão ser divididas nos minutos seguintes ao furto. Quanto mais tempo esperarem para repartir o roubo, mais probabilidades haverá de se vigarizarem entre si. E há até uma hierarquia. Quem recebe a maior fatia do bolo é o artista da mão leve – neste caso o Zé do Porto -, pois é ele quem tem o trabalho mais especializado. O seu negócio estende-se a toda a família: mulher, filho e irmão também são carteiristas. E a enteada só saiu do ramo porque engravidou há pouco tempo.

O seu grande rival é o Xula, um dos mais odiados do meio e que à conta dos gamanços é dono e senhor de carros topos de gama. Há muito mais anos no sector, Aníbal dos Transportes é tão velho que até já tem dificuldade em subir as escadas do eléctrico. Mas não lhe falta genica. Certo dia mandou uma carteira à cara de um turista que tinha acabado de roubar: “Isto é dinheiro que se traga?”, gritou. Quase tão idoso, o Cheira Mal distingue-se pelo andar vagaroso, boné de panamá branco e barriga proeminente.

Outro figurão no meio dos carteiristas é o Beto das Galinheiras, que costuma actuar sozinho no Metro, na linha verde, mas anda misteriosamente desaparecido de circulação. Paulinho Boxeur, também conhecido como Paulinho de Alfama, é ‘correo’ (companheiro) do filho do Zé do Porto. A polícia apelida a dupla de Batman e Robin… Já o Praias ganhou esta alcunha devido à sua ‘muleta’ (disfarce): uma toalha de praia, que leva ao ombro para se infiltrar entre os turistas. É discreto mas levanta suspeitas no Inverno, quando o tempo não é para banhos no mar.

“Os carteiristas portugueses não são perigosos nem agem com violência. Se são apanhados largam a carteira e fogem dali. Nenhum anda armado. Chegam a entregar a carteira à vítima depois do furto. Ela até agradece. Nem se apercebe que já não tem o dinheiro”, revela o Comissário Ribeiro, da Divisão de Segurança a Transportes Públicos da PSP. “Normalmente andam em grupos da mesma nacionalidade mas há grupos mistos”, acrescenta.

Tal como noutros ramos de actividade, também há especializações. Se os portugueses preferem as paragens dos eléctricos a abarrotar de turistas (o interior do Eléctrico 15 e as gares de metro estão cada vez mais out porque são vigiadas com câmaras de televisão), os carteiristas oriundos da África negra investem nos furtos nas escadas rolantes do Rossio, Cais do Sodré, Baixa-Chiado e Alameda, de preferência na hora de ponta.

Já os magrebinos usam os seus truques de ilusionismo nas esplanadas da Baixa: sentam-se ao pé da vítima, colocam o casaco com os bolsos rotos nas costas da cadeira e através dos buracos abrem as bolsas. Os de Leste têm mais lata e roubam as carteiras enquanto as pessoas caminham na rua. E são os mais brutos da praça. Há muitas mulheres e até grávidas da Roménia e dos Balcãs no activo. São as chamadas ‘dançarinas de salão’, nome exótico dado às raparigas que andam em cima dos turistas que apreciam as vistas das Portas do Sol. Uma das mais afamadas, e menos bonitas, tem uma alcunha que lhe assenta bem: Magda Patológica. Vimo-la em acção, com mais três compinchas, para os lados do castelo de São Jorge. Ainda se aproximou da mochila do repórter fotográfico, com um ar guloso, mas ele estava já prevenido para as investidas.

Se por um lado o negócio já teve melhores dias (as carteiras andam mais magras e a polícia mais atenta), por outro, as denúncias têm crescido nos últimos três anos, embora muitas das vítimas (principalmente as estrangeiras) prefiram não se dar ao trabalho de ir até à esquadra. Diz o relatório de segurança interna que em 2006 houve pouco mais de 12 mil participações à polícia. No ano seguinte, elas subiram para as 14 mil e em 2008 atingiram as 15 mil. Contas feitas, há, em média, 40 denúncias diárias de furtos feitos por carteiristas.

A polícia estima que haja, só em Lisboa, cerca de 80 carteiristas de nacionalidade portuguesa e meia centena de estrangeiros, a maioria do Leste da Europa. Estes vieram para ficar, depois do Euro-2004. Ainda experimentaram os ajuntamentos dos Jogos Olímpicos de Atenas, no mesmo ano. Mas depressa regressaram ao nosso país. Queixavam-se de que a polícia grega era demasiado violenta com eles. Apanhá-los é tão difícil como agarrar enguias à mão. “É um crime difícil de detectar mesmo que saibamos que andam por ali. São muito lestos a roubar e despacham-se rapidamente das provas”, declara o subchefe Agostinho, da PSP, que levanta o véu do modus operandi destes pequenos criminosos: “O truque está nos dois toques. Um dos carteiristas dá um empurrão mais forte numa parte do corpo da vítima para a distrair de um outro contacto mais subtil, que passa despercebido. Confundida, ela nem se apercebe de que ficou sem a carteira.”

Quando são apanhados em flagrante, utilizam todo o tipo de truques para se escapulirem dos agentes, normalmente à paisana. O Dentinho de Ouro, conhecido no meio por ter ainda mais lábia do que os rivais, disse a um agente, logo depois de ser apanhado, esta frase lapidar: “Ainda bem que o vejo, senhor guarda. Eu ia entregar agora mesmo esta carteira na esquadra.” Não teve sorte. Outros chegam a usar argumentos economicistas, que deixam até os agentes com vinte anos de serviço incrédulos: “Sô polícia, estamos simplesmente a fazer serviço público. Graças à nossa actividade entram muitas divisas no país.”

A gíria de um meliante

  • Música ou cabedal: carteira;
  • Montada: eléctrico;
  • Guiros: turistas
  • Estrilhar: refilar;
  • Cabra: turista atento aos carteiristas;
  • Nixo: carteira sem dinheiro;
  • Balúrdio: carteira carregada de dinheiro;
  • Correo: companheiro de crime;
  • Asa-direita ou encosta: aqueles que fazem ‘tampão’ na entrada; dos transportes para confundir as vítimas;
  • Mão leve: o artista que furta a carteira;
  • Muleta: disfarce usado para se camuflarem entre os turistas.
5 conselhos para se prevenir dos ladrões

  1. Não leve a mochila às costas. Coloque-a antes sobre a barriga
  2. Ao entrar no metro e nos eléctricos, se sentir alguma pressão de passageiros, desconfie
  3. Ande com pouco dinheiro na carteira
  4. Coloque a carteira em bolsos interiores da roupa ou da mochila
  5. Se for roubado, faça queixa na esquadra da polícia

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